24/05/2025
Alunos lidam com barreiras culturais, preconceito e podem precisar de mais tempo para concluir os estudos
As universidades brasileiras nunca receberam tantos estudantes indígenas quanto atualmente. Dados do Censo de Educação Superior do Ministério da Educação mostram que, em 2022, havia cerca de 70 mil alunos de centenas de etnias matriculados em instituições de ensino superior (29% em públicas e 71% em privadas) – em 2009, eram 11,4 mil. A expansão obrigou as instituições a se organizar para promover a inclusão e responder às demandas desse novo público, mas também gerou tensões e atritos. Entre as barreiras enfrentadas pelos alunos indígenas, algumas são bem conhecidas pelos demais estudantes, como os problemas para se sustentar financeiramente ou dificuldades para acompanhar os estudos, assim como situações de isolamento. Mas também há entraves de caráter cultural, relacionados, por exemplo, a lacunas na proficiência em língua portuguesa ou à pouca familiaridade com a vida urbana e questões do ambiente acadêmico relativas a prazos. Os estudantes relatam, ainda, episódios de preconceito e afirmam que não se sentem culturalmente representados nos currículos dos cursos e na composição do corpo docente.
“Os indígenas são o grupo cuja presença, em termos relativos, mais cresceu no ensino superior neste século, o que demonstra que eles têm um grande interesse em dar continuidade aos estudos”, avalia a pedagoga e antropóloga Chantal Medaets, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ela coordena o Observatório Indígenas e Quilombolas no Ensino Superior (Obiques), que mapeia ações afirmativas nas universidades públicas do país.
Uma dificuldade de atender às demandas, segundo ela, é que se trata de um público muito diverso. “Há desde estudantes que vieram de comunidades distantes, dentro de terras indígenas, até jovens que moravam e trabalhavam em grandes cidades. Alguns já cursaram outras universidades. Cada trajetória é única”, destaca Medaets. A Unicamp tem cerca de 500 alunos indígenas e, desde 2018, promove um vestibular específico para eles, com uma oferta anual de 130 vagas. Desde 2022, o processo é realizado em parceria com a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Nas provas, a redação versa sobre temas do cotidiano dos candidatos e as questões discursivas buscam utilizar textos de autores de povos originários.
A inclusão dos indígenas nas universidades ganhou ímpeto graças à lei de cotas, de 2012, que reservou vagas para autodeclarados pretos, pardos e indígenas (PPI) na proporção em que esses grupos estão presentes na população. Muitas instituições também criaram processos seletivos exclusivos para indígenas – algumas delas no início dos anos 2000, antes mesmo da lei. Segundo dados coletados por Medaets e outros colegas pesquisadores, parte deles indígenas, em 2021 e 2022, vestibulares ou provas adaptadas eram realizadas por 28 das 69 universidades federais brasileiras (40% do total) e 22 das 41 universidades estaduais (53%).
Em artigo publicado no ano ado na revista Novos Estudos, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Medaets e colaboradores mostraram que a criação de um vestibular indígena na Unicamp, assim como aconteceu em outras instituições brasileiras, surgiu e cresceu na esteira da mobilização por cotas para pretos e pardos. “Enquanto na defesa das cotas para negros predomina o argumento da inclusão como mecanismo de justiça social, no caso indígena prevalecem argumentos a favor da valorização da diferença cultural. A tônica é a defesa da entrada de saberes indígenas nos espaços acadêmicos”, escreveu.
Outra peculiaridade é que essas iniciativas foram idealizadas com pouca participação de lideranças dos povos originários – de 50 universidades que criaram processos seletivos para indígenas, eles encontraram somente 11 com registro de colaboração de organizações ou líderes das etnias. O artigo menciona, como contraponto, o caso da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), que tem uma presença significativa de alunos indígenas, embora não tenha um vestibular exclusivo. Ao ouvir os movimentos locais dos povos originários, a instituição criou cursos talhados para suas demandas, com uma licenciatura oferecida na Terra Indígena Alto Rio Negro, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM).
A inclusão dos estudantes indígenas exigiu a criação de estratégias de acolhimento apropriadas para as suas necessidades. “Eles são o grupo da população que menos a e menos conclui o ensino médio e isso tem reflexos quando alcançam o ensino superior”, diz o psicólogo Everson Meireles, do grupo Diversifica: Inclusão e Diversidade da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Em um artigo publicado em janeiro na Revista Educação e Políticas em Debate, o grupo de Meireles analisou o perfil de 10.736 indígenas com matrículas ativas até 2018 nos cursos de graduação em 65 instituições federais de ensino superior.
Embora 87,2% tivessem renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo, apenas 56,8% relataram participação em algum programa de assistência estudantil, como alimentação e moradia. O engajamento em atividades de pesquisa (7,46%) e extensão (6,43%) foi menor do que a média de outros estudantes cotistas, que era, respectivamente, de 11,9% e 8,4%. A maioria era do sexo feminino (52,5%) e 43,5% eram aldeados, ou seja, viviam em comunidades e territórios indígenas. O estudo também comparou percentuais de ingresso de 3 mil indígenas por meio da Lei de Cotas de acordo com a porcentagem dessa população em cada estado do país e viu que em 14 deles os estudantes estavam sub-representados.
O antropólogo José Jorge de Carvalho, da Universidade de Brasília (UnB), coautor do artigo, destaca outras dificuldades. “Muitos dos aldeados vivem em comunidades onde o português não é a primeira língua ou sequer é falado cotidianamente”, diz ele, que coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa. Com base em resultados de estudos qualitativos, Carvalho afirma que a convivência na universidade não é isenta de conflitos. “O ambiente pode ser hostil e há discriminação por diferenças culturais.”
“Eu costumo ser a última escolhida na hora de formar grupos na sala de aula, e já aconteceu de professores perguntarem em público se estou conseguindo acompanhar a matéria, como se eu fosse atrasada por ser indígena”, conta a estudante Angelina Ferreira, de 26 anos, da etnia Baniwa. No início de 2023, ela se mudou de São Gabriel da Cachoeira para estudar arquitetura e urbanismo na Unicamp. Veio acompanhada do filho de 5 anos, da irmã (que ou no curso de pedagogia), da sobrinha, de 11 anos, e do pai, encarregado de cuidar dos netos enquanto as filhas estudam.
“A assistente social perguntou: ‘Por que trazer seu pai?’. Eu penso: por que não trazer? A família e a coletividade são muito importantes”, conta. Um mês antes de chegar em Campinas, ela viveu uma situação traumática: seu irmão, de 19 anos, que cursava istração na Unicamp, suicidou-se. “Ele era muito tímido e ficava isolado. Quando cheguei, entendi o que ele pode ter ado. Eu comia sozinha, me sentia muito solitária no curso. Vi casos de racismo, dentro e fora da universidade. Ele não tinha estrutura para lidar com isso”, conta Ferreira.
Luiz Medina, da etnia Guarani, de Dourados (MS), também se queixa de preconceito. “Já ouvi que nós, indígenas, não vamos conseguir fazer ciência, e que ‘daqui a pouco a universidade vai começar a falar até de horóscopo’ por estarmos aqui”, conta ele, que ingressou na Unicamp pelo vestibular indígena em 2019, incentivado pela mãe – que cursava doutorado em ciência política na instituição – e se formou em istração pública no ano ado. Medina faz mestrado interdisciplinar em sustentabilidade e proteção social na Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, com bolsa da FAPESP. Estuda as comunidades tradicionais do Vale do Ribeira (SP).
Não há dados nacionais consolidados sobre evasão dos estudantes de graduação indígenas. Levantamentos pontuais indicam que o problema existe, mas igualmente grave é a retenção, a demora em terminar o curso. “Há a necessidade de ampliar o apoio para permitir a continuidade e a conclusão dos estudos. É preciso reconhecer suas trajetórias e seu tempo de formação, que pode ser mais longo, principalmente na concessão de bolsas”, avalia Maria Aparecida Bergamaschi, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), instituição que também oferece anualmente vagas em um vestibular indígena em cursos que são acordados com lideranças de etnias da região.
Estudo publicado em novembro de 2023 por autoras da Universidade Católica de Brasília na revista Educação analisou a trajetória acadêmica de estudantes indígenas que ingressaram na UnB entre 2004 e 2013. No total, foram 108 alunos de 35 etnias. Até o segundo semestre de 2017, só 25,5% haviam concluído o curso, embora 92,1% já pudessem tê-lo feito. Outros 43,5% foram desligados, por cancelamento ou por não concluírem o curso dentro do período máximo. Na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), até dezembro de 2021, o índice de evasão entre 62 alunos indígenas e quilombolas era de 17,64%, e 80,64% estavam demorando mais para se formar do que o esperado, segundo dados levantados pela assistente social Janaina Guerra para sua pesquisa de doutorado em política social e direitos humanos na Universidade Católica de Pelotas (Uel), defendida em março deste ano. “Em 2021, ainda havia estudantes indígenas que tinham ingressado na graduação em 2013”, observa Guerra, que integra a equipe da recém-criada Pró-reitoria de Ações Afirmativas e Equidade da UFPel.
Um relatório apresentado em 2023 e elaborado pela Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp analisou o desempenho de 2019 a 2023 de estudantes estratificado por formas de ingresso e mostrou que o grupo de ingressantes pelo Vestibular Indígena apresenta as maiores taxas de evasão dentre todas as formas de entrada na Unicamp. Os dados também apontaram que o ritmo de formação era mais lento do que o da média do corpo discente – eles completaram apenas 40% do que seria esperado. Para combater o problema, a universidade instituiu, neste ano, uma mudança no currículo. Os indígenas terão que cumprir, no primeiro ano, uma formação inicial composta por conteúdos essenciais das diferentes áreas do conhecimento. Depois de concluí-la, iniciarão os cursos nos quais conquistaram vagas. “Essa mudança visa possibilitar um percurso mais tranquilo nos cursos e foi elaborada numa ampla discussão que envolveu diferentes setores da universidade, incluindo os coletivos de estudantes indígenas”, explica a antropóloga Artionka Capiberibe, uma das coordenadoras da iniciativa, batizada de Programa Formativo Intercultural para Ingressantes pelo Vestibular Indígena.
Professores da Universidade Federal do Pará (UFPA) oferecem cursos de extensão de reforço em português, matemática e informática, para garantir a permanência nos cursos e diminuir a retenção e a evasão. Na instituição, 41% dos 105 estudantes indígenas que ingressaram entre 2010 e 2014 acabaram cancelando suas matrículas, segundo artigo publicado em janeiro de 2025 na Educação e Políticas em Debate. “Muitos sentem falta da família e comunidade”, explica a historiadora e antropóloga Denise Machado Cardoso, da UFPA, uma das autoras do artigo.
Em 2024, a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) iniciou a oferta de um curso de licenciatura intercultural para professores indígenas. As 80 vagas oferecidas – 40 em 2024 e 40 neste ano – foram preenchidas. A proposta político-pedagógica do curso – alternando atividades na universidade e na comunidade – teve a participação de docentes das universidades públicas paulistas e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), para responder a uma demanda do Fórum de Articulação dos Professores Indígenas do Estado de São Paulo. “A escolha do campus na Baixada Santista se deveu à proximidade com comunidades indígenas no litoral e a aderência da proposta pedagógica do campus, que tem a interdisciplinaridade e o território como elementos estruturantes”, afirma a reitora da Unifesp, Raiane Assumpção.
Carvalho, da UnB, defende que o ingresso seja reformulado, com a adoção de um modelo flexível em que os alunos indígenas possam escolher onde estudar considerando fatores como proximidade geográfica e apoio familiar. Para ele e para Bergamaschi, é preciso inserir no currículo mais disciplinas, estudos e projetos de extensão que tratem dos conhecimentos indígenas, contemplando cosmovisões e idiomas desses povos.
A artista e arte-educadora Mirna Anaquiri foi a primeira indígena a defender uma dissertação de mestrado na Universidade Federal de Goiás (UFG), em 2017, e hoje é doutora em artes visuais pela mesma instituição. Em dezembro, tornou-se docente da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), em Teixeira de Freitas. Após se tornar mestre, recebeu mensagens de mulheres de várias etnias, interessadas em ingressar na academia. A educadora afirma que o processo de adaptação envolvendo indígenas e universidades precisa ser uma via de mão dupla. “Fala-se em dar mais tempo para que os alunos possam se adaptar ao ambiente acadêmico, mas e quanto aos professores? Também vão estudar e incorporar os conhecimentos indígenas a suas atividades? Se a resposta for não, o processo continuará desigual”, avalia.
Uma versão deste texto foi publicada na edição impressa representada no pdf.
Artigos científicos MEDAETS, C. et al. Cotas para negros, encontro de saberes para indígenas: Gramáticas da inclusão étnico-racial no ensino superior. Novos Estudos Cebrap. v. 43, n. 2. maio 2024. MEIRELES, E. et al. Condições de ingresso e permanência de indígenas nas instituições federais de ensino superior entre 2013 e 2019. Revista Educação e Políticas em Debate. v. 14, n. 1, p. 1-24. jan. 2025. BRAGA, G. S. et al. 10 anos do Processo Seletivo Especial na UFPA: Conquistas e desafios da inserção do movimento indígena no ensino superior paraense. Revista Educação e Políticas em Debate. v. 14, n. 1, p. 1-20. jan. 2025. RENAULT, C. R. N. dos S. e ALBUQUERQUE, A. R. de. Perfil e trajetória acadêmica de estudantes indígenas da Universidade de Brasília. Educação. v. 48. 2023. BERGAMASCHI, M. A. et al. Estudantes indígenas em universidades brasileiras: Um estudo das políticas de o e permanência. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. v. 99, n. 251, p. 37-53. jan 2018.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.